Felipe Mortara
3 min readMar 7, 2021

Faltou, mas ainda tem

Faltou e não foi pouco. Um ano depois do primeiro empurrão da pandemia olho pra trás e vejo o tanto de coisa que faltou fazer, que faltou viver. Bem mais que um punhado. Mas bem menos que uma tonelada. Não caberiam num guarda-móveis ou num armazém de desejos. Mas insistem em derramar de um lugar repleto de memórias arquitetadas e incompletas, tal um plano de anel viário. Uma transamazônica de vivências da vida.

Faltou um carnaval em Salvador e um em Olinda. Faltou um abraço na Dona Dina. Também não teve uma cerveja com os amigos de Paraty. Nem o feriado na Chapada dos Veadeiros. Faltou uma viagem com meu pai e meu irmão para algum lugar cheio de vida, de bichos, de perguntas por todos os lados. Faltou uma festa de 65 anos para minha mãe.

Faltou um papo adulto com meu avô meio artista, meio intelectual de direita, meio fascista. Faltou perguntar a ele pra quê tanta arma em casa, na vida. Porém, eu tinha só 14 anos quando se foi. Também acho que faltou um carteado a mais com a Nonna Carmen, mostrar que eu era bom mesmo de buraco e não só no rouba-montes. Do Nonno Alberto me faltou repertório e astúcias de jornalista para indagar dúvidas sólidas da fuga pré-guerra ao Brasil.

Parando bem pra pensar, ainda falta um monte de coisas com Vovó Lucy e ela tá viva. Há umas duas semanas foi mudada a contragosto para um asilo uma casa de repouso. Das tias que tomaram a decisão eu entendo o ponto, primeiro de cuidados intensivos e a todas as horas, depois o aspecto financeiro. Tão linda a ideia de viver até os últimos dias em sua casa, refúgio, com a sua canequinha favorita na mesmíssima prateleira do armário de sempre. Faltou ligar para a cuidadora, a Inês, que a encheu de amor por mais de 10 anos e por quem tenho uma gratidão imensa.

O presente de Lucy. Faltou dar o presente. Lá se vão mais de dois meses de seus 95 anos completos, em vida. Lúcida, com intermitências, mas bela e cheia de um brilho nos olhos verdinho-água que por vezes acinzentam. Quase como esses dias de março em São Paulo, de chuva e sol, por vezes de mãos dadas. Devem desaguar também, quando se percebe na casa de repouso, longe de suas plantinhas, de suas panelinhas, de seu reino.

Num canto da minha sala o presente espera, pintado e assado no forno, a chance de homenagear Lucy. Nas curvas dos pinceis da minha sogra, uma obra singela para marcar as nove décadas e meia que cada um daqueles joelhos, rins e dentes viveram. Tá bom, alguns dentes não aguentaram. Mas Lucy está aqui, está conosco. Está lindinha.

Um prato decorativo que não terá lugar para ser guardado no asilo. Assinado com um beijo de todos os netos. Para ela não deixar de lembrar que estamos aqui. Mas discordo da minha mãe, que diz que não devo dar o prato por não ser útil para alguém numa casa de repouso. Esse objeto não foi pintado para ser útil, mas para lembrar do amor que sentimos por alguém.

Faltou também contar aqui do tanto que não faltou com Lucy. Não faltaram papos na sua mesinha azul, que abria de um armário de fórmica na cozinha. Tampouco faltou café com leite, digo, Nescafé com leite, porque Lucy nunca gostou de café de coador. Os bifinhos de fígado acebolados na frigideira de ferro também nunca faltaram. Nem o melhor arroz com feijão do mundo. Não faltou ensinar a fazer feijão nem o molho de pimenta, com vinagre e nunca azeite, “para deixar perfumado e não ardido”.

Está tudo aqui comigo, Lucy. As nossas caminhadas mundo afora. Na 25 de Março, no Mercadão da Cantareia, no calçadão de Copacabana. Nossa cara de pau pedindo para provar queijos, de alguma malandragem que ensinou a mim, ao Fábio e ao Murilo. Das sessões de carteado na sua casa, da Martina e da Daniella tentando esconder cartas. Espero que você possa acessar esses momentos. Se não puder, não tem problema, eu os recrio para você. Quantas vezes precisar.

Lucy, se você esquece das visitas recentes, esquece também das tristezas. Das internações e dissabores. Assim é menos pesado. Mas não esquece das pessoas, das filhas, dos netos, de si. Ainda é Lucy. Deixa só passar essa fase vermelha que eu vou aí te dar um beijo, nem que seja pela grade da sua nova casa. Faltou dizer do amor que transborda e que você também não esquece.

Felipe Mortara

Brasileiro, jornalista, viajante enclausurado, escritor e roteirista em construção. Desovador de palavras, doula de narrativa atravancada. Saudosista de amanhã